O golpe de misericórdia no HIV. Eis a aposta de médicos e pesquisadores para um projeto de vacinação experimental que será iniciado hoje, na África do Sul. O país que contabiliza mil novos casos diários de contaminação começa um ensaio clínico inédito com 5.400 voluntários e duração estimada de quatro anos. O trabalho é apontado na comunidade científica como o mais promissor desde a identificação do vírus causador da Aids, em 1983. “Se for utilizada ao mesmo tempo que os métodos de prevenção com eficácia comprovada que já adotamos, uma vacina segura e eficaz seria o último pregão no caixão para o HIV”, acredita Anthony Fauci, diretor do Instituto Nacional de Alergia e Doenças Infecciosas (NIAID) dos Estados Unidos, um dos financiadores do projeto.
Batizado HVTN 702, o estudo contará com a participação de homens e mulheres sexualmente ativos, com idade entre 18 e 35 anos e moradores de 15 localidades sul-africanas. Uma parte do grupo tomará a substância imunizadora, e outra, um placebo, sendo que a divisão entre os voluntários será aleatória. Todos os participantes receberão um total de cinco injeções ao longo de um ano. A segurança deles será cuidadosamente monitorizada, com a oferta, inclusive, do padrão de cuidados para a prevenção da infecção pelo HIV. Os resultados finais são esperados para o fim de 2020.
Os sul-africanos receberão uma versão “reforçada” de uma vacina testada em 2009 na Tailândia em mais de 16 mil voluntários. À época, a intervenção, chamada RV144, reduziu em 31,2% o risco de contágio nos participantes três anos e meio depois que eles foram imunizados. Foi desenvolvida, então, uma adaptação ao subtipo do HIV que predomina na África Austral. A primeira fase, menor e tendo como foco a segurança da substância, teve os resultados anunciados em julho deste ano, na 21ª conferência internacional sobre a Aids, em Durban na África do Sul. Com duração de 18 meses, a etapa intitulada HVTN100 teve 252 voluntários, que tinham risco muito baixo de contrair o HIV. O sistema imunológico deles reagiu bem à vacina, disse, à época, Kathy Mngadi, uma das pesquisadoras participantes do projeto.
A etapa que será iniciada hoje tem o intuito de avaliar a eficácia da vacina. Segundo Lynn Morris, médico do Instituto Nacional de Doenças Contagiosas (NICD) da África do Sul, os resultados obtidos na Tailândia não são suficientes para que a vacina saia do campo experimental e comece a ser prescrita pelo mundo. “Estabelecemos um limite mínimo de eficácia em 50%”, explica. Anthony Fauci, diretor do NIAID, avalia que desempenhos nesse nível já são suficientes para causar um impacto positivo. “Até mesmo uma vacina moderadamente eficaz reduziria de forma significativa o peso da doença em países e populações muito infectadas.”
Cuidados seguem
Com 7 milhões de soropositivos, a África do Sul tem um dos índices de prevalência de HIV mais altos do mundo: 19,2%, segundo o Programa Conjunto das Nações Unidas sobre HIV/Aids (Unaids). Anualmente, 2 milhões e meio de pessoas no mundo são infectadas pelo vírus, que, desde os anos de 1980, causou 30 milhões de mortes. Por isso, mesmo com o otimismo em torno da vacina que será testada, especialistas insistem na importância de não baixar a guarda frente à doença. “Uma vacina eficaz seria um ponto de inflexão, mas esses ensaios durarão anos. Temos que continuar utilizando os outros métodos de prevenção para reduzir os novos contágios”, reitera o médico Lynn Morris.
Melhorias no acesso ao tratamento têm permitido o controle da evolução do vírus e o aumento da expectativa de vida de soropositivos pelo mundo. A Unaids estima que, em 2015, havia um número recorde de pessoas com mais de 50 anos vivendo com HIV: 5,8 milhões, dos 36,7 milhões de infectados. No caso dos sul-africanos, a média do tempo de vida dos soropositivos é de 62,9 anos. “O HIV teve um número devastador na África do Sul, mas, agora, começamos uma exploração científica que poderá ser uma grande promessa para o nosso país. Se for encontrada uma vacina contra o HIV que funcione na África do Sul, poderia alterar drasticamente o curso da pandemia”, aposta Glenda Gray, presidente e diretora executiva do Conselho de Pesquisa Médica do país. O órgão participa do projeto com o NIAID, a Fundação Bill e Melinda Gates, os laboratórios Sanofi Pasteur e GlaxoSmithKline e a Rede de Ensaios de Vacinas contra o HIV.
Alerta na Rússia
A Rússia tem passado por um aumento preocupante do número de infectados pelo HIV, alertou ontem o diretor do Centro Federal de Luta contra a Aids, Vadim Pokrovski. Segundo ele, a quantidade de soropositivos aumenta 10% a cada ano no país. Em 2015, foram registrados oficialmente 110 mil novos casos, o equivalente a 270 por dia. “A situação só se agrava e, atualmente, ameaça a segurança nacional, pois poderia se transformar em uma epidemia generalizada antes do fim de 2021”, explicou o especialista.
Mais da metade dos novos infectados (51%) é dependente químico, enquanto 47% se contaminaram ao manter relações sexuais heterossexuais sem proteção e 1,5% adquiriu o vírus durante relações sexuais homossexuais. “A Rússia é o único país do mundo em que os dependentes (químicos) representam mais de 50% dos soropositivos”, destacou Pokrovski, ressaltando que o enfrentamento ao avanço da doença não depende apenas de apoio financeiro. “A questão não é só os fundos públicos serem suficientes. Nem sequer se fala sobre a prevenção de novos casos.”
O presidente russo, Vladimir Putin, tem apoiado a promoção de ideias conservadoras — trocou, por exemplo, as campanhas informativas por chamados à abstinência — e os poderes públicos russos focam mais no tratamento da Aids do que na prevenção. Conforme dados oficiais, os soropositivos representam 0,58% da população de 146,5 milhões de pessoas. Segundo Pokrovski, os cálculos do Centro Federal de Luta contra a Aids indicam para uma taxa entre 0,89% e 0,96% dos habitantes, o equivalente a 1,3 e a 1,4 milhão de pessoas.
Fonte: Correio Braziliense