Uma pílula que previne o HIV é a nova aposta de pesquisadores ligados ao Ministério da Saúde para conter a epidemia de Aids no Brasil, que avança principalmente entre jovens e grupos mais vulneráveis ao vírus. A proposta prevê que a chamada “profilaxia pré-exposição”, ou Prep, seja ofertada de forma inédita no SUS e também em farmácias do país como alternativa extra de proteção a pessoas com maior exposição ao HIV.
A medida faz parte de um protocolo recém-finalizado por um comitê de especialistas, a pedido do Departamento de DST/Aids e Hepatites Virais do Ministério da Saúde, com diretrizes para a inclusão dessa pílula na rede pública. A Folha teve acesso a detalhes do documento, que deve ser encaminhado nesta semana à Conitec (comissão técnica que avalia a oferta de novas tecnologias no SUS). A expectativa é que, após consulta pública, a decisão da comissão técnica ocorra até outubro. O ministro da Saúde, Ricardo Barros (PP-PR), não tem poder de veto sobre as decisões do grupo.
“Pela primeira vez, vamos colocar duas modalidades de acesso: uma no SUS, com distribuição gratuita, e outra nas farmácias”, diz Fábio Mesquita, diretor do departamento. Se for aprovado, o Brasil pode ser o primeiro país a oferecer a nova prevenção de forma gratuita. Ao menos outros dois, França e Inglaterra, fazem discussão similar. Aqui, a estimativa é que 781 mil pessoas convivam com o HIV.
Comprimido – Na prática, o modelo consiste na associação, em um só comprimido, de dois antirretrovirais: tenofovir e emtricitabina. Em outros países, como EUA, o medicamento (que impede que o vírus “escravize” a célula) é vendido com o nome comercial Truvada.
“Se a pessoa toma direitinho, a eficácia é perto de 100%”, explica Valdiléa Veloso, da Fiocruz, uma das principais pesquisadoras desse modelo de prevenção. A desvantagem é a necessidade de uso diário da pílula, bem como seu custo. No SUS, a recomendação é que o método seja ofertado para pessoas com risco ampliado e que fazem parte de populações-chave, onde o número de novos casos é 20 a 30 vezes maior que na população geral: homens que fazem sexo com homens, transexuais, travestis, usuários de drogas e profissionais do sexo. A ideia é que a Prep não seja para qualquer pessoa desses grupos, mas para as com histórico de relações desprotegidas, por exemplo. “Como se caracteriza quem está sob risco acrescido? Não é o fato de ser gay. É ter mais exposição e risco”, diz Mesquita.
Pessoas soronegativas com parceiros positivos que recém iniciaram o tratamento também estão entre as que podem aderir à estratégia. O pesquisador Nilo Martinez Fernandes, da Fiocruz, cita outros exemplos. “São pessoas que têm medo de a camisinha furar, ou tem parceiro positivo ou não conseguem usar o preservativo”. Segundo ele, a ideia não é substituir outros métodos, mas adicionar à chamada “prevenção combinada”, conjunto que inclui a camisinha masculina e feminina e testagem de DSTs, entre outros.
Para Valdiléa Veloso, a autonomia em optar pela proteção é um dos principais pontos positivos dessa pílula. “Há métodos de prevenção que não dependem só da pessoa, mas do outro. Na Prep, a pessoa só depende dela para tomar o comprimido”, diz. A ideia é ofertar a pílula em unidades especializadas, onde o paciente pode ser acompanhado a cada três meses.
Farmácias
Planejada para ser incluída no SUS, a oferta da “profilaxia pré-exposição” como alternativa extra de prevenção contra o HIV pode chegar em breve também às farmácias. Proposta do comitê assessor do Departamento de HIV/Aids do Ministério da Saúde também prevê que a “Prep” esteja disponível para compra por outras pessoas além daquelas para as quais é estudada na rede pública. A venda, no entanto, ocorreria apenas mediante apresentação de receita médica específica –hoje, o medicamento, conhecido como Truvada, é de uso controlado.
Segundo o diretor do departamento, Fábio Mesquita, EUA, Malásia e Tailândia já ofertam Truvada ou genéricos nas farmácias. “Como o critério do SUS vai ser mais restrito, é possível que tenham outras pessoas que queiram usar, mas não estão nos critérios”. Um impasse, no entanto, pode ser o preço. Nos Estados Unidos, por exemplo, o custo para o usuário pode chegar a US$ 2.500 ao ano, segundo associações do setor.
Por aqui, a expectativa é que a oferta conjunta para o SUS e farmácias acabe por baixar significativamente os preços –em 2015, o Ministério da Saúde obteve descontos de até 90% na compra de medicamentos inovadores. “A negociação que estamos fazendo é que o preço seja idêntico, para governo e farmácia. Para que a população possa comprar, tem que ter um preço equilibrado.”
Com camisinha – Ao mesmo tempo em que podem reduzir novas infecções por HIV, a oferta da Prep na rede pública e em farmácias também pode abrir espaço para polêmicas que, segundo especialistas, ocorrem com o surgimento de novas propostas para controle da epidemia de Aids. “Há uma preocupação em geral quando falamos isso. As pessoas perguntam: ah, mas não vão relaxar? Não vão deixar de usar preservativo?”, afirma a pesquisadora Valdiléa Veloso, da Fiocruz.
Para ela, não há esse risco. “Gosto de comparar com o air bag. Quando começaram a discutir a obrigatoriedade de carros terem air bag, diziam que menos gente ia usar o cinto. Hoje, temos o air bag e usamos cinto, e não paramos aí: queremos freio ABS e vidros que não estilhacem”. Ela lembra que, mesmo com a Prep, o uso da camisinha ainda é recomendado, por ser a única forma de prevenir outras doenças sexualmente transmissíveis.
Para Alessandra Ramos, do grupo TransRevolução e voluntária há um ano na pesquisa Prep Brasil, que avalia a adesão ao medicamento por grupos vulneráveis, a estratégia pode atender também aqueles que hoje têm dificuldade em usar o preservativo. Ela cita pesquisa recente do ministério que mostra que, enquanto 94% das pessoas apontam a camisinha como melhor forma de prevenção, 45% admitem que não a usa. “O papel do ministério não é prescrever o comportamento de ninguém. É compreender que existe um risco e dar mecanismos para que cidadãos evitem ao máximo a infecção pelo HIV”, diz Alessandra.
Fonte: Folha de S. Paulo