Os primeiros resultados do maior estudo clínico realizado em pacientes com doença de Chagas crônica não foram os esperados por pesquisadores, médicos e pacientes. Após quase 12 anos de pesquisa, o ensaio Benefit (sigla em inglês para Avaliação do Benzonidazol para Interrupção da Tripanossomíase) concluiu que o medicamento benzonidazol não conseguiu interromper o agravamento da doença em indivíduos com problemas cardíacos já estabelecidos. Publicado na revista científica
New England Journal of Medicine, uma das mais conceituadas na área, o estudo levantou questionamentos que serão investigados em novos trabalhos. “Embora não tenha chegado ao resultado que todos gostariam de ver, esse ensaio terá muitos desdobramentos. A avaliação da carga parasitária [quantidade de parasitos na corrente sanguínea] dos pacientes e o estudo das características genéticas dos patógenos causadores da doença são dados que devem nos ajudar a investigar diferenças regionais, detalhando estes primeiros resultados mais gerais”, avalia a chefe do Laboratório de Biologia Molecular e Doenças Endêmicas do Instituto Oswaldo Cruz (IOC/Fiocruz), Constança Britto, que integra o comitê central do Benefit e é uma das autoras do trabalho. O
artigo em inglês está disponível no site da revista.
O benzonidazol é um dos dois medicamentos capazes de agir contra os parasitos Trypanosoma cruzi, causadores da doença de Chagas. Por ter menor toxicidade, este é o remédio mais utilizado e o único autorizado no Brasil. Na chamada fase aguda da doença, que ocorre logo após a infecção, o benzonidazol é extremamente eficaz, curando quase 100% dos pacientes. No entanto, nos casos crônicos em que já existem lesões cardíacas causadas por décadas de convivência com os parasitos no organismo, os benefícios do tratamento nunca foram claramente estabelecidos.
Para elucidar essa questão, o estudo Benefit envolveu 2.854 voluntários com problemas no coração causados pela doença de Chagas crônica. Convidados a participar da pesquisa, os pacientes foram divididos em dois grupos, sendo que um deles foi tratado com benzonidazol, enquanto o outro recebeu placebo – uma substância neutra, que não interfere na evolução da doença. Para evitar que as expectativas influenciassem no resultado do trabalho, durante toda a duração do estudo, pacientes e pesquisadores não sabiam quais voluntários estavam recebendo o medicamento e quais estavam no grupo placebo. Após o tratamento, cada paciente foi acompanhado por um período médio de cinco anos, com avaliação das condições clínicas e coleta de amostras de sangue para verificar a presença de parasitos T. cruzi.
O agravamento dos problemas cardíacos (estimado pelo número de complicações ocorridas durante o acompanhamento clínico, tais como isquemia, taquicardia ou necessidade de implantação de marca-passo) foi semelhante nos dois grupos, ocorrendo em 27% dos pacientes submetidos ao tratamento com benzonidazol e em 29% daqueles que receberam o placebo. Para os cientistas, o resultado mostrou que a terapia não interrompeu a progressão clínica da doença. “Os pacientes do grupo tratado com benzonidazol não apresentaram melhora clínica em relação aos pacientes que receberam o placebo. Eles continuaram no curso natural da infecção, que pode avançar progressivamente no seu grau de severidade”, diz o pesquisador do Laboratório de Biologia Molecular e Doenças Endêmicas do IOC Otacílio da Cruz Moreira, que também participou do estudo.
Efeito sobre os parasitos
Além de observar o impacto do benzonidazol sobre o agravamento da doença em indivíduos com problemas cardíacos estabelecidos, o estudo procurou entender como o medicamento afetava os parasitos nestes pacientes. Uma técnica que identifica a presença de parasitos em amostras de sangue por meio da detecção do seu material genético – chamada de PCR – foi usada no acompanhamento da evolução da infecção nos voluntários. Pioneiro no uso desta metodologia para detectar o T. cruzi, o Laboratório de Biologia Molecular e Doenças Endêmicas do IOC foi responsável pelos exames realizados durante o ensaio clínico com os cerca de 1.300 pacientes do Brasil.
Para que se pudesse comparar a presença de parasitos antes e depois do tratamento, foram considerados apenas os pacientes que tinham exames positivos para a presença do T. cruzi antes do início da terapia – cerca de 60% do total de voluntários. Os resultados apontam que 47% deles apresentaram resultado negativo após o uso do benzonidazol, sugerindo uma redução da presença de parasitos. Já no grupo placebo, os resultados negativos foram menos frequentes: a taxa ficou em 33%. Segundo Constança, a diferença entre os dois grupos foi significativa, o que pode indicar que o medicamento teve efeito sobre os patógenos. Porém, outros estudos são necessários para determinar se houve realmente cura parasitológica entre os pacientes tratados com benzonidazol. “Apenas com o resultado negativo da PCR, não podemos garantir que não existem mais parasitos no organismo dos pacientes. Como na fase crônica da doença de Chagas a carga parasitária é muito baixa, pode ser que eles não estejam presentes em uma determinada amostra de sangue, embora ainda estejam circulando no organismo ou alojados no músculo cardíaco, por exemplo”, explica a pesquisadora. “O que podemos dizer é que houve uma diferença estatisticamente significativa no resultado entre o grupo tratado com benzonidazol e o grupo controle, que recebeu placebo, e isso indica um efeito do medicamento”, acrescenta.
No artigo, os pesquisadores informam que avaliações quantitativas para a determinação da carga parasitária em cada paciente, que já foram concluídas, e a análise das características genéticas destes micro-organismos – chamada de genotipagem –, que serão iniciadas em breve, poderão ajudar a investigar algumas hipóteses. Uma delas considera que as variedades genéticas do T. cruzi podem influenciar no grau de resposta ao tratamento com benzonidazol, impactando no resultado clínico. Os cientistas não afastam também outras possibilidades, que ainda não foram testadas. Uma vez que os pacientes foram tratados seguindo o esquema padrão da terapia com benzonidazol – que prevê até 90 dias de administração do medicamento –, os pesquisadores levantam a hipótese de que uma terapia prolongada poderia ter um resultado diferente, da mesma forma que ocorre em outras infecções crônicas, como tuberculose e hanseníase.
Contexto imunológico
A característica da resposta imune na doença de Chagas é um dos principais fatores considerados pelos cientistas para explicar por que a eliminação dos parasitos com o uso de medicamentos pode não ser suficiente para interromper o agravamento dos pacientes. Depois da fase aguda, marcada por sintomas como febre, dor de cabeça, fraqueza e vômitos, a infecção pelo T. cruzi costuma evoluir de forma silenciosa. Sete em cada dez portadores crônicos não apresentam sintomas clínicos, e apenas 30% desenvolvem as manifestações tardias. Nestes casos, as lesões geralmente aparecem 20 a 40 anos depois da infecção original e o coração é o principal órgão afetado. “Não se sabe por que só um terço dos pacientes desenvolve a forma cardíaca, mas está claro que cada pessoa responde de uma forma diferente ao T. cruzi. Precisamos considerar que a doença de Chagas tem dois contextos: um do parasito, que provoca a infecção, e outro do hospedeiro, que reage a ela”, destaca Otacílio.
Os autores do estudo Benefit ressaltam que os resultados não devem desestimular a busca por novos medicamentos ou combinações de compostos que sejam mais efetivos contra o T. cruzi e menos tóxicos para os pacientes. Além disso, as conclusões do trabalho não alteram as recomendações atuais para o tratamento com benzonidazol nos estágios iniciais da doença de Chagas crônica, quando o medicamento pode prevenir o aparecimento das manifestações mais graves, além de impedir a transmissão da doença de mãe para filho, assim como nas demais situações em que os benefícios do tratamento foram comprovados em estudos anteriores.
Créditos da Notícia: Maíra Menezes